quinta-feira, 9 de outubro de 2008

de novo a ciberíada

O tema da identidade pessoal está longe de ser estranho a The Cyberiad, de Stanislaw Lem. Encontramo-lo, por exemplo, numa das narrativas de «Tale of the Three Storytelling Machines».

Trurl, um dos protagonistas dos contos que compõem o livro, assume aqui o papel de narrador. Está num planeta, Legária, onde há alguns séculos viveu o sábio Malaputz. (Todas as personagens, note-se, são robots.) Malaputz era extremamente bem intencionado, tinha em vista nada mais que o bem-estar geral, mas a implementação dos seus planos utópicos trouxe apenas miséria e devastação aos legarianos. Lamentavelmente, morreu sem sofrer o castigo merecido.

Este facto levou à criação da Ordem Sagrada da Forja da Ressureição. Os seus membros, motivados pelo desejo de vingança, dedicam-se a um ritual insólito: todos os dias constroem uma réplica perfeita de Malaputz e torturam-na até à morte. Trurl, que nada sabia a este respeito, surpreende-os durante uma sessão de tortura e, ameaçando-os com uma arma, exige explicações. Não fica satisfeito com o que ouve. Alega que a réplica não é Malaputz, pelo que não passa de uma pessoa inocente, à qual não são atribuíveis os desastres que se abateram sobre os legarianos. A réplica, naturalmente, diz chamar-se Malaputz. Mas mesmo isto não deixa Trurl convencido:
-- Still, it is not the same -- I said.
-- How, not the same?
-- Did you not yourself say, Professor, that Malaputz no longer lives?
-- But we have ressurrected him!
-- A double perhaps, an exact duplicate, but not the self-same, true original!
-- Prove it, Sirrah!
Poderíamos esperar agora uma discussão profunda sobre a metafísica da identidade pessoal. Mas a resposta de Trurl é mais ajustada a um livro de fantasia:
-- I don't need to prove a thing -- I said -- seeing that I hold this laser in my hand [...].
E não conto o resto. Curiosamente, Trurl não precisaria de provar coisa alguma, ainda que estivesse desarmado: mesmo que a «réplica» não seja numericamente idêntica a Malaputz, isso não a torna um objecto impróprio de vingança. Pois uma pessoa pode ser moralmente responsável por actos que ela mesma não realizou e para os quais nada contribuiu. Esta afirmação um tanto paradoxal, prometo, será justificada noutro post.