A questão filosófica mais saliente que se coloca a respeito da identidade pessoal é a das
condições de persistência das pessoas, mais precisamente das pessoas humanas. (Pessoas sobrenaturais ou artificiais, se existirem ou vierem a existir, poderão ter condições de persistência muito diferentes das nossas.) O problema é saber, enfim, em que circunstâncias os seres como nós começam a existir, continuam a existir e deixam de existir. De uma teoria da identidade pessoal devemos esperar respostas para questões como as seguintes:
- Continuaremos a existir se ficarmos em estado vegetativo persistente?
- Será que um dia já fomos embriões ou fetos? Ou começámos a existir apenas quando o nosso organismo atingiu um nível mais avançado de desenvolvimento mental?
- Se cada um dos nossos hemisférios cerebrais fosse transplantado para um corpo diferente, sobreviveríamos à mudança?
Uma formulação bastante comum (mas tendenciosa!) do problema da identidade pessoal é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a uma pessoa que existe noutro momento, t'?
Antes de corrigirmos a pergunta, há que esclarecê-la em dois aspectos.
O termo «pessoa», no seu sentido filosófico comum, designa um ser com certas capacidades mentais sofisticadas, como a racionalidade e a consciência de si. (Daí a possibilidade de existirem pessoas não-humanas, sem organismos
Homo sapiens; e, já agora, a realidade de seres humanos que não são pessoas.)
O segundo esclarecimento é sobre a própria noção de identidade. A pergunta é acerca da identidade numérica entre pessoas, um conceito a distinguir do de identidade qualitativa. É fácil captar a diferença. Eu não sou qualitativamente idêntico ao miúdo de cinco anos que fui um dia, pois tenho agora muitas propriedades diferentes. Mas sou numericamente idêntico a esse miúdo: falar dele e falar de mim é falar de uma pessoa, e não de duas. E se, por uma suposição mais do que improvável, houvesse alguém exactamente como eu no que toca a propriedades intrínsecas (uma reprodução fiel, átomo a átomo, do meu organismo), teríamos o inverso: duas pessoas qualitativamente idênticas, mas numericamente distintas. (Caso contrário, não seriam duas.)
E basta de esclarecimentos, que os posts não se querem longos. Para responder à pergunta indicada, será preciso descrever as condições necessárias e suficientes da identidade das pessoas ao longo do tempo. Uma resposta possível, mas tão má que serve apenas como ilustração, é a seguinte:
Necessariamente, a pessoa que existe em t é a mesma pessoa que existe em t' se, e apenas se, a primeira recorda-se de algumas experiências da segunda ou vice-versa.
De acordo com esta perspectiva, a
memória é o aspecto crucial da identidade pessoal. Por razões a explorar noutros
posts, a teoria não funciona. Ainda assim, as perspectivas mais influentes sobre a identidade pessoal envolvem também o apelo a relações de carácter psicológico.
Mas por que razão, afinal, a pergunta é tendenciosa? Porque não contempla a possibilidade de existirmos sem ser pessoas. Por outras palavras, porque parece presumir que somos seres racionais e conscientes de si
essencialmente. E isto é discutível. Se um dia
fomos um embrião, por exemplo, ou se pudermos
sobreviver num estado de inconsciência irreversível, então não somos pessoas essencialmente. Uma questão filosoficamente mais neutra, portanto, é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a algo que existe noutro momento, t'?
Mesmo esta pergunta é tendenciosa, já que envolve pressupostos filosoficamente controversos Isto, contudo, ficará para esclarecer noutra ocasião. Este
post já vai monstruoso.