sexta-feira, 26 de setembro de 2008

entrevista a m. s. lourenço

É uma das entrevistas mais fascinantes que li alguma vez. M. S. Lourenço, especialista em filosofia da matemática e em Wittgenstein, revela a sua mente subtil e singular -- e a sua prosa admirável -- em resposta às questões de Miguel Tamen. A entrevista, muito longa, está disponível aqui, no site do entrevistado. Para tornar apetecível a sua leitura, reproduzo de seguida quatro breves passagens da mesma. Poderia ter escolhido dezenas de outras igualmente memoráveis, acreditem.

A propósito das suas aulas de lógica na Universidade de Lisboa:
Os alunos insurgiram-se essencialmente contra a ruptura de hábitos de pensamento e de exposição que as minhas aulas representavam. Os seus hábitos mentais tinham sido consolidados num estilo de pensamento por associação livre e tiveram a maior dificuldade em aceitar um estilo de pensamento por cadeias de inferências, que forçam uma conclusão. Como o foco da atenção muda constantemente na associação livre, a prática da associação livre é um estado flutuante de desconcentração e não é, por isso, condutiva a uma capacidade de concentração rigorosa. A generalidade dos alunos tinha por isso uma capacidade de concentração ínfima. Esta incapacidade de concentração era agravada ainda por uma reduzida capacidade de memorização (indispensável para fazer deduções), a qual era justificada por uma concepção tida por «progressista», segundo a qual memorizar é a negação da inteligência.
Sobre a sua dualidade de interesses (literários e filosóficos):
Um submarino é construído de acordo com o princípio do isolamento estanque dos espaços estratégicos, de modo a que a inundação de um não leve à inundação do espaço estratégico contíguo. Mas para mim foi confortante descobrir que não me foi possível organizar a minha mente como um submarino, e que a concepção dos dois compartimentos estanques da mente, como a do Reverendo Dogson [Lewis Carroll], em que podia esconder de um o que o outro podia saber, é uma fantasia narcisística de omnipotência, na qual uma pessoa se pode deleitar quando passeia, depois das aulas, entre as brumas de Christ Church Meadow, mas que a experiência posterior vem mostrar ser uma ilusão tão deformada como a do self-made man.
Sobre os tutoriais, em Oxford, com a filósofa Gertrude Anscombe:
Uma sessão tinha 50 a 60 minutos, muitas vezes seguida de chá; mas mesmo durante o chá o formato do diálogo usado no tutorial continuava, porque de modo algum se tratava de um momento de menor concentração ou diminuída perspicácia conceptual. As mesmas dificuldades repetiam-se, como quando, por exemplo, pegava numa chávena de chá e me perguntava:

"Would you trust Mr. Ballard's memory?"

Uma resposta adequada envolve reconhecer o passo relevante das Investigações Filosóficas, mas (e esta é a essência da atitude oxoniana) não se deve dizer que se reconheceu a alusão ao passo das Investigações (I, 342), uma vez que o tutor já sabe qual é; é suficiente saber inseri-la na organização da resposta.
A propósito de não ter gosto pela discussão pública:
A ideia básica é que neste momento da história da humanidade já se atingiu um estado de hipertrofia de interacção social. Não se deve por isso colaborar numa expansão desta hipertrofia, a qual se destina a legitimar os objectivos triviais da civilização de massas. Deve-se por isso renunciar a posições de leadership na já descontrolada hipertrofia da civilização de massas, excercendo a mencionada abstinência de participação em cliques ou lobbies, quaisquer que eles sejam.