terça-feira, 28 de outubro de 2008

intenção e previsão


Temos expectativas quanto aos efeitos das nossas acções: prevemos (melhor ou pior) que aquilo que fizermos terá determinados resultados. Contudo, parece que não pretendemos que todos esses resultados ocorram. Alguns deles, sem dúvida, correspondem às nossas intenções (àquilo que pretendemos como fim ou como meio para outra coisa), mas outros parecem ser meramente previstos. Não se nos apresentam como mais do que simples efeitos colaterais daquilo que pretendemos realmente.

Um dos exemplos mais usados na discussão sobre esta distinção é o do dos bombardeamentos. No bombardeamento aterrorizador, o agente tem a intenção de matar civis de modo a apressar a rendição do inimigo. No bombardeamento estratégico também morrem civis (o mesmo número de civis, para não haver diferença nas consequências), mas o agente que lança as bombas não tem a intenção de os matar: embora preveja a ocorrência da sua morte, pretende apenas atingir um alvo militar legítimo. A morte dos civis, neste segundo caso, será apenas um efeito colateral do acto.

Esta distinção entre intenção e (mera) previsão coloca duas questões importantes. (1) Será que a distinção faz realmente sentido? Em caso afirmativo, que critérios haveremos de usar para distinguir os efeitos pretendidos dos meramente esperados? (2) Se a distinção faz sentido e é suficientemente clara, terá alguma importância moral intrínseca? Será que, pelo menos em algumas circunstâncias, é permissível provocar um mal se este for meramente previsto, quando seria errado fazê-lo intencionalmente?

domingo, 26 de outubro de 2008

O «paradoxo da deontologia» foi apresentado -- que eu saiba pela primeira vez -- por Robert Nozick em Anarchy, State, and Utopia. Mas Nozick, ele mesmo um deontologista de primeira linha, não considerou a sua superação particularmente difícil. Para justificar a admissão de restrições deontológicas, limitou-se a apelar aos fundamentos da ética de Kant. Como nesta passagem:
As restrições laterais à acção reflectem o princípio kantiano subjacente de que os indivíduos são fins, e não meros meios; não podem ser sacrificados ou usados para se atingir outros fins sem o seu consentimento. Os indivíduos são invioláveis.
Mas será que, assumida uma perspectiva kantiana, as restrições deontológicas começam a fazer sentido? Nem por isso. Se somos fins, e não meros meios, poderemos dizer que será pior que cinco sejam tratados como meros meios (com determinada gravidade), do que apenas um ser tratado como mero meio (de forma similar). E assim poderemos dizer que o melhor será, para retomar o exemplo, matar um para evitar que outros matem cinco. Não o fazer, mesmo numa perspectiva kantiana, continua a afigurar-se paradoxal.

sábado, 25 de outubro de 2008

ódio à razão

Observamos de facto que, quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade, tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento; e daí provém que em muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão, se elas quiserem ter a sinceridade de o confessar, surja um certo grau de misologia, quer dizer de ódio à razão. E isto porque, uma vez feito o balanço de todas as vantagens que elas tiram, não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar, mas ainda das ciências (que a elas lhes parecem no fim e ao cabo serem também um luxo do entendimento), descobrem contudo que mais se sobrecarregaram de fadigas do que ganharam em felicidade, e que por isso finalmente invejam mais do que desprezam os homens de condição inferior, que estão mais próximos do puro instinto natural e não permitem à razão grande influência sobre o que fazem ou deixam de fazer.
Immanuel Kant
Fundamentação da Metafísica dos Costumes

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

antes de parfit


"An android," he said, "doesn't care what happens to any other android. That's one of the indications we look for."
"Then," Miss Luft said, "you must be an android."
That stopped him; he stared at her.
"Because," she continued, "Your job is to kill them, isn't it? You're what they call - "She tried to remember.
"A bounty hunter," Rick said. "But I'm not an adroid."
"This test you want to give me." Her voice, now, had begun to return. "Have you taken it?"
"Yes." He nodded. "A long, long time ago; when I first started with the department."
"Maybe that's a false memory. Don't androids sometimes go around with false memories?"
Rick said, "My superiors know about the test. It's mandatory."
"Maybe there was once a human who looked like you, and somewhere along the line you killed him and took his place. And your superiors don't know." She smiled. As if inviting him to agree.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

o «paradoxo» da deontologia

Promover a felicidade geral (ou outras coisas com valor) é louvável e recomenda-se. Mas há limites. Pelo menos assim pensam os deontologistas, que julgam existir cursos de acção que, mesmo que resultem nas consequências mais valiosas, não deixam de ser eticamente inaceitáveis. Por exemplo, não se pode matar intencionalmente uma pessoa inocente de modo a salvar duas. Ou três, ou cinco. Ou talvez um milhão, se bem que nestes casos extremos os deontologistas dividem-se.

Os limites éticos que restringem aquilo que é permissível fazer enquanto perseguimos quaisquer fins, até os mais louváveis, são conhecidos por restrições deontológicas. E estas restrições, insistem os deontologistas, são centradas no agente: além de não podermos matar um para salvar cinco, também não podemos matar um para evitar que outros agentes matem cinco. Em termos mais gerais, não podemos infringir uma restrição de modo a minimizar a infracção de restrições.

É aqui que se coloca o chamado «paradoxo da deontologia»: se infringir uma restrição é algo assim tão terrível, infringir cinco vezes a mesma restrição há-de ser muito pior. Nesse caso, como poderemos considerar racional a condenação de alguém que mata um para evitar que outros matem cinco? Mais do que um verdadeiro paradoxo, este é um enigma que se coloca a quem defende uma perspectiva deontológica da obrigação moral. Como eu, já agora.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

copiar memórias

We do not quasi-remember other people's past experiences. But we might begin to do so. The causes of long-term memories are memory-traces. It was once thought that these might be localized, involving changes in only a few brain cells. It is now more probable that a particular memory-trace involves changes in a larger number of cells. Suppose that, even if this is true, neuro-surgeons develop ways to create in one brain a copy of a memory-trace in another brain. This might enable us to quasi-remember other people's past experiences.
Derek Parfit
Reasons and Persons (1984)

domingo, 12 de outubro de 2008

quase-memórias

Outra crítica importante à perspectiva da memória, esta concebida por Joseph Butler (1692-1752), corre assim: as atribuições de memória (e.g., Maria recorda-se de ter estado na festa) pressupõem a identidade pessoal (Maria é a pessoa que esteve na festa), o que significa que não podemos usar a memória como critério para determinar a identidade.

A solução é substituir o conceito de memória pelo de quase-memória, que não envolve o pressuposto indicado: pode ser impossível uma pessoa recordar-se de algo que não lhe tenha ocorrido, mas qualquer um poderá quase-recordar-se de algo que sucedeu a outra pessoa. O conceito de quase-memória é um dos variadíssimos insights de Derek Parfit que fizeram de Reasons and Persons uma obra-prima absoluta, na medida em que a filosofia admite tal coisa.

Tenho uma quase-memória de uma experiência, diz Parfit, se
  1. Pareço recordar-me de ter tido a experiência;
  2. Alguém teve essa experiência;
  3. A minha memória aparente depende causalmente, de uma forma apropriada, dessa experiência.
As memórias comuns, portanto, incluem-se entre as quase-memórias, pois satisfazem as três condições. Mas um dia poderão existir quase-memórias que não são memórias.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

a álgebra dos dragões


Everyone knows that dragons don't exist. But while this simplistic formulation may satisfy the layman, it does not suffice for the scientific mind. The school of Higher Neantical Nillity is in fact wholly unconcerned with what does exist. Indeed, the banality of existence has been so amply demonstrated, there is no need for us to discuss it any further here. The brilliant Cerebron, attacking the problem analytically, discovered three distinct kinds of dragon: the mythical, the chimerical, and the purely hypothetical. They were all, one might say, nonexistent, but each nonexisted in an entirely different way. And then there were the imaginary dragons, and the a-, anti- and minus-dragons (colloquially termed nots, noughts and oughtn'ts by the experts), the minuses being the most interesting on account of the well-known dracological paradox: when two minuses hypercontiguate (an operation in the algebra of dragons corresponding roughly to simple multiplication), the product is 0.6 dragon, a real nonplusser. Bitter controversy raged among the experts on the question of whether, as half of them claimed, this fractional beast began from the head down or, as the other half maintained, from the tail up.
Stanislaw Lem
«The Third Sally or The Dragons of Probability», The Cyberiad

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

de novo a ciberíada

O tema da identidade pessoal está longe de ser estranho a The Cyberiad, de Stanislaw Lem. Encontramo-lo, por exemplo, numa das narrativas de «Tale of the Three Storytelling Machines».

Trurl, um dos protagonistas dos contos que compõem o livro, assume aqui o papel de narrador. Está num planeta, Legária, onde há alguns séculos viveu o sábio Malaputz. (Todas as personagens, note-se, são robots.) Malaputz era extremamente bem intencionado, tinha em vista nada mais que o bem-estar geral, mas a implementação dos seus planos utópicos trouxe apenas miséria e devastação aos legarianos. Lamentavelmente, morreu sem sofrer o castigo merecido.

Este facto levou à criação da Ordem Sagrada da Forja da Ressureição. Os seus membros, motivados pelo desejo de vingança, dedicam-se a um ritual insólito: todos os dias constroem uma réplica perfeita de Malaputz e torturam-na até à morte. Trurl, que nada sabia a este respeito, surpreende-os durante uma sessão de tortura e, ameaçando-os com uma arma, exige explicações. Não fica satisfeito com o que ouve. Alega que a réplica não é Malaputz, pelo que não passa de uma pessoa inocente, à qual não são atribuíveis os desastres que se abateram sobre os legarianos. A réplica, naturalmente, diz chamar-se Malaputz. Mas mesmo isto não deixa Trurl convencido:
-- Still, it is not the same -- I said.
-- How, not the same?
-- Did you not yourself say, Professor, that Malaputz no longer lives?
-- But we have ressurrected him!
-- A double perhaps, an exact duplicate, but not the self-same, true original!
-- Prove it, Sirrah!
Poderíamos esperar agora uma discussão profunda sobre a metafísica da identidade pessoal. Mas a resposta de Trurl é mais ajustada a um livro de fantasia:
-- I don't need to prove a thing -- I said -- seeing that I hold this laser in my hand [...].
E não conto o resto. Curiosamente, Trurl não precisaria de provar coisa alguma, ainda que estivesse desarmado: mesmo que a «réplica» não seja numericamente idêntica a Malaputz, isso não a torna um objecto impróprio de vingança. Pois uma pessoa pode ser moralmente responsável por actos que ela mesma não realizou e para os quais nada contribuiu. Esta afirmação um tanto paradoxal, prometo, será justificada noutro post.

domingo, 5 de outubro de 2008

outro pressuposto

Como sugeri, quando discutem a identidade pessoal os filósofos costumam ter em mente este problema:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a algo que existe noutro momento, t'?
Podemos aperceber-nos agora de que este problema envolve uma concepção duracionista da persistência, pois só faz sentido no pressuposto de que a persistência no tempo é uma questão de identidade numérica entre coisas que estão inteiramente presentes em cada momento da sua existência.

Não há mal nenhum em colocar questões impregnadas de pressupostos controversos. (Só às vezes, como no exemplo célebre «Já parou de bater na sua mulher?».) Devemos é estar conscientes dos pressupostos em causa, o que nem sempre é fácil.

sábado, 4 de outubro de 2008

como persistem as coisas?

Muitas coisas, mesmo muitas, persistem ao longo do tempo. Livros, gatos, planetas, pessoas: tudo isto existe em mais do que um momento. Ou seja, persiste. Resta saber em que consiste a persistência. As coisas duram ou perduram? Esta pergunta enigmática decorre de uma distinção, introduzida por David Lewis em On the Plurality of Worlds, entre duas concepções filosóficas da persistência. Percebida a distinção, a pergunta ficará clara.

Os duracionistas estão do lado do senso comum. Cada coisa persistente, dizem, existe inteiramente em cada momento da sua existência. Um gato -- David, por exemplo -- é um ser tridimensional que, por assim dizer, se «move» ao longo do tempo na sua totalidade. Quando pego em David no dia d, não pego apenas numa parte de David; quando volto a pegar-lhe em d+1, pego uma vez mais em David na sua totalidade. David em d e David em d+1 são numericamente idênticos (são um e o mesmo). A persistência, então, resulta da identidade numérica entre coisas em momentos ou períodos de tempo diferentes.

Os perduracionistas, pelo contrário, entendem que a persistência temporal é muito semelhante à extensão espacial. David, ninguém duvida, tem partes espaciais: uma cauda, quatro patas, uma cabeça. Isto significa que ele não está totalmente presente na cauda, nas patas ou na cabeça. O mesmo vale para o tempo: as coisas persistentes têm partes temporais, pelo que não existem inteiramente em cada momento da sua existência. Quando pego em David em d, estou apenas a pegar numa parte temporal de David; em d+1, pego noutra parte temporal do gato -- numa parte numericamente distinta da primeira. David é então um ser a quatro dimensões, ao contrário do que sugere o senso comum. Como qualquer outro objecto persistente, é uma espécie de agregado das suas partes temporais, prolongando-se no tempo como se estende no espaço. À semelhança de tudo o que persiste de dia para dia, deve a sua persistência ao facto de ter partes temporais que existem em cada dia.

E então? As coisas duram ou perduram?

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

sobrevivência e identidade relativa

If there is no such relation as strict, «classical» identity, questions about our persistence through time are not questions about strict identity, but about some sameness relation or another. Which sameness relation? Suppose we ask once more wether Jones still exists after lapsing into a persistent vegetative state. (Analogous considerations apply to the question wether you were ever a fetus or an embryo.) The resulting human vegetable is presumably the same animal as Jones, but it could hardly be the same person, as it seems not to be a person at all. Which relation are we asking about, same person or same animal? This is a linguistic question, not a metaphysical one. You may argue that because «Jones» is a «personal» name, correlated with the personal pronoun «she», we are probably asking wether the vegetable is the same person as John, and not the same animal (or the same mass of matter or anything else). So wether it is correct to say that Jones survives will depend on this semantic point.
Eric T. Olson
The Human Animal: Personal Identity Without Psychology

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

identidade relativa

Concluí a explicação do problema da identidade pessoal com a afirmação de que a própria questão envolve pressupostos filosoficamente discutíveis. Vou apontar agora um desses pressupostos: o de que a identidade é, por assim dizer, absoluta.

Temos uma pessoa, a, num certo momento, e algo, b, noutro momento. (Como vimos, b tanto pode ser uma pessoa como outra coisa: um animal humano em coma irreversível, um robot que herdou os estados mentais de a.) E perguntamos: será que a é b? Ou seja, será que a e b são numericamente idênticos?

É a este tipo de questão que nos conduz o problema da identidade pessoal, como costuma ser entendido. Mas há quem pense que as questões deste género são impróprias: a ideia é que não faz sentido perguntar, sem mais, se a é b. Podemos apenas perguntar, por exemplo, se a é a mesma pessoa que b. Ou se a é o mesmo animal que b. Ou se a é o mesmo objecto material que b.

A proposta, em suma, é que as questões sobre identidade têm de ser relativizadas a tipos de coisas. E assim fará sentido dizer, por exemplo, que a é o mesmo animal que b, ainda que a não seja a mesma pessoa que b. Mas não fará sentido dizer, sem qualificações, que a é b. Ou, já agora, que a não é b.

Pelos comentários a este post (que agradeço!), diria que Locke pressupôs a concepção relativa da identidade.

m. s. lourenço: outra entrevista

Este post trouxe-me à memória outra entrevista a M. S. Lourenço, esta muito mais antiga -- e curta! Faz parte do livro de José Trindade Santos, Da Filosofia no Liceu, publicado em 1974 pela editora Seara Nova. Este livro, aliás, inclui bastante informação interessante -- e de difícil acesso -- sobre a história do ensino da filosofia em Portugal. Estão lá, por exemplo, os programas da disciplina desde 1905.

Aqui ficam, então, dois excertos da entrevista a M. S. Lourenço:

Sobre o programa da disciplina de filosofia:
[A] sua noção de Filosofia é mais ou menos de salão -- uma pessoa lê uns livros que a habilitam a dizer umas generalidades sobre a existência de Deus e os problemas do mundo (ou como se diz na alínea ... «concepções modernas do espaço e do tempo. A matéria. A vida»). Tenho a impressão que nunca conseguiram ultrapassar a noção de «amateur», do filósofo como uma pessoa que diz coisas interessantes sobre os grandes problemas do Ser, da Vida e do Mundo. E é isto que estão a pretender implementar com o programa ainda hoje em vigor.

Discordo na medida em que a Filosofia é uma disciplina com um método próprio individualizado e desenvolvido. Ensinar Filosofia consiste na apreensão desse método -- e como não se conceberia a ideia de ensinar Matemática de outro modo que não fosse o professor transmitindo ao aluno em que consiste o método matemático -- raciocínio dedutivo nas suas diversas formas -- o ensino da Filosofia consistirá em o professor conseguir que o aluno venha a ser capaz de usar o género de raciocínio utilizado em Filosofia. Não vejo portanto alguma diferença de estatuto, científico ou pedagógico, entre a Filosofia e a Física, a Matemática ou a Biologia, ou qualquer outra disciplina que se tenha identificado com o propósito de proceder de premissas para conclusões.
A propósito da filosofia enquanto disciplina de cultura geral
Encarar o ensino da Filosofia como um contrapeso que a cultura humanística apõe à formação chamada científica ou tecnológica é conferir-lhe um carácter ancilar, recaindo na concepção amadorista da Filosofia segundo a qual um engenheiro ou um farmacêutico devem compensar a estreiteza da sua formação desenvolvendo a capacidade de produzir juízos interessantes acerca de temas gerais como «concepções modernas do espaço e do tempo. A matéria. A vida», por exemplo. Um bom humanista ou um bom engenheiro não precisam de ser compensados de coisa nenhuma. Se, além de serem uma coisa ou outra, querem aprender Filosofia, essa atitude deverá resultar da sua curiosidade intelectual por outra disciplina, submetendo-se às exigências que a aprendizagem dessa disciplina implique. Portanto a ideia de que a Filosofia deve compensar a formação dos especialistas parece-me destituída de sentido.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

a perspectiva da memória

No post que elucida o problema metafísico da identidade pessoal, sugeri que a perspectiva da memória -- atribuída frequentemente a Locke -- não nos leva muito longe. A ideia, recordemos, é a seguinte:
Necessariamente, a pessoa que existe em t é a mesma pessoa que existe em t' se, e apenas se, a primeira recorda-se de algumas experiências da segunda ou vice-versa.
Uma das razões mais simples para rejeitar a perspectiva da memória assenta num facto igualmente simples: a identidade é transitiva. Ou seja, se a é idêntico a b e b é idêntico a c, então a é idêntico a c.

Montemos agora um cenário que não é particularmente implausível: João de 2030 recorda-se de algumas experiências de João de 2000, João de 2000 também se recorda de algumas experiências de João de 1970, mas João de 2030 não se recorda de nenhuma experiência de João de 1970.

O que implica a perspectiva da memória a respeito desta situação? Que João de 2030 é a mesma pessoa que João de 2000. Que João de 2000 é a mesma pessoa que João de 1970. E agora o desastre: que João de 2030 não é a mesma pessoa que João de 1970. Dada a transitividade da identidade, estas conclusões são inconsistentes, pelo que a perspectiva da memória tem de ser revista.

P.S. - Este argumento foi concebido por Thomas Reid (1710-1796), um dos críticos principais da perspectiva de Locke sobre a identidade pessoal.

domingo, 28 de setembro de 2008

pessoas

[A person] is a thinking intelligent being, that has reason and reflection, and can consider itself as itself, the same thinking thing in different times and places; which it does only by that consciousness which is inseparable from thinking, and, as it seems to me, essential to it: It being impossible for any one to perceive, without perceiving that he does perceive.
John Locke
An Essay Concerning Human Understanding

identidade pessoal

A questão filosófica mais saliente que se coloca a respeito da identidade pessoal é a das condições de persistência das pessoas, mais precisamente das pessoas humanas. (Pessoas sobrenaturais ou artificiais, se existirem ou vierem a existir, poderão ter condições de persistência muito diferentes das nossas.) O problema é saber, enfim, em que circunstâncias os seres como nós começam a existir, continuam a existir e deixam de existir. De uma teoria da identidade pessoal devemos esperar respostas para questões como as seguintes:
  • Continuaremos a existir se ficarmos em estado vegetativo persistente?
  • Será que um dia já fomos embriões ou fetos? Ou começámos a existir apenas quando o nosso organismo atingiu um nível mais avançado de desenvolvimento mental?
  • Se cada um dos nossos hemisférios cerebrais fosse transplantado para um corpo diferente, sobreviveríamos à mudança?
Uma formulação bastante comum (mas tendenciosa!) do problema da identidade pessoal é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a uma pessoa que existe noutro momento, t'?
Antes de corrigirmos a pergunta, há que esclarecê-la em dois aspectos.

O termo «pessoa», no seu sentido filosófico comum, designa um ser com certas capacidades mentais sofisticadas, como a racionalidade e a consciência de si. (Daí a possibilidade de existirem pessoas não-humanas, sem organismos Homo sapiens; e, já agora, a realidade de seres humanos que não são pessoas.)

O segundo esclarecimento é sobre a própria noção de identidade. A pergunta é acerca da identidade numérica entre pessoas, um conceito a distinguir do de identidade qualitativa. É fácil captar a diferença. Eu não sou qualitativamente idêntico ao miúdo de cinco anos que fui um dia, pois tenho agora muitas propriedades diferentes. Mas sou numericamente idêntico a esse miúdo: falar dele e falar de mim é falar de uma pessoa, e não de duas. E se, por uma suposição mais do que improvável, houvesse alguém exactamente como eu no que toca a propriedades intrínsecas (uma reprodução fiel, átomo a átomo, do meu organismo), teríamos o inverso: duas pessoas qualitativamente idênticas, mas numericamente distintas. (Caso contrário, não seriam duas.)

E basta de esclarecimentos, que os posts não se querem longos. Para responder à pergunta indicada, será preciso descrever as condições necessárias e suficientes da identidade das pessoas ao longo do tempo. Uma resposta possível, mas tão má que serve apenas como ilustração, é a seguinte:
Necessariamente, a pessoa que existe em t é a mesma pessoa que existe em t' se, e apenas se, a primeira recorda-se de algumas experiências da segunda ou vice-versa.
De acordo com esta perspectiva, a memória é o aspecto crucial da identidade pessoal. Por razões a explorar noutros posts, a teoria não funciona. Ainda assim, as perspectivas mais influentes sobre a identidade pessoal envolvem também o apelo a relações de carácter psicológico.

Mas por que razão, afinal, a pergunta é tendenciosa? Porque não contempla a possibilidade de existirmos sem ser pessoas. Por outras palavras, porque parece presumir que somos seres racionais e conscientes de si essencialmente. E isto é discutível. Se um dia fomos um embrião, por exemplo, ou se pudermos sobreviver num estado de inconsciência irreversível, então não somos pessoas essencialmente. Uma questão filosoficamente mais neutra, portanto, é a seguinte:
Em que circunstâncias uma pessoa que existe num certo momento, t, é idêntica a algo que existe noutro momento, t'?
Mesmo esta pergunta é tendenciosa, já que envolve pressupostos filosoficamente controversos Isto, contudo, ficará para esclarecer noutra ocasião. Este post já vai monstruoso.

sábado, 27 de setembro de 2008

ornitologia de poltrona

Ao problema humeano da indução seguiram-se outros desafios filosóficos colocados pelo raciocínio indutivo. Um deles é o «paradoxo dos corvos», assim chamado por causa do exemplo com o qual se costuma explicá-lo. Foi descoberto pelo filósofo da ciência Carl G. Hempel (1905-1997).

Consideremos as seguintes hipóteses:
H1: Todos os corvos são negros
H2: Tudo o que não é negro não é um corvo.
A observação de corvos que sejam negros confirma H1, ou seja, aumenta a probabilidade de esta hipótese ser verdadeira. E que o que confirmará H2? Evidentemente, a observação de coisas que não sejam negras e não sejam corvos: chapéus amarelos, flores azuis, bandeiras verdes, planetas vermelhos. A lista seria interminável.

Ora, acontece que H1 e H2 são logicamente equivalentes: implicam-se mutuamente, são verdadeiras e falsas precisamente nas mesmas circunstâncias. Mesmo sem treino em lógica, é fácil perceber a equivalência: dizer que todos os corvos são negros é afirmar que todos os corvos estão no conjunto das coisas negras, ou seja, que se algo não está no conjunto das coisas negras não é um corvo, ou seja, que tudo o que não é negro não é um corvo.

Para gerar o paradoxo basta acrescentar um princípio que se afigura auto-evidente: se duas afirmações são equivalentes, tudo aquilo que confirmar uma confirmará a outra. E assim chegamos à conclusão estranhíssima de que a observação de chapéus amarelos, flores azuis, etc., confirma a hipótese de todos os corvos serem negros. Nelson Goodman fez o seguinte comentário a propósito desta conclusão:
A perspectiva de sermos capazes de investigar teorias ornitológicas sem nos expormos ao mau tempo é tão atraente que sabemos que tem de haver nela uma armadilha.
Note-se que este não é um paradoxo no sentido mais estrito do termo, já que o raciocínio de Hempel não produz nenhuma contradição. Simplesmente leva a um resultado que, à luz do senso comum, é quase tão absurdo como uma contradição. Mas qual será ao certo a armadilha escondida no paradoxo dos corvos?

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

entrevista a m. s. lourenço

É uma das entrevistas mais fascinantes que li alguma vez. M. S. Lourenço, especialista em filosofia da matemática e em Wittgenstein, revela a sua mente subtil e singular -- e a sua prosa admirável -- em resposta às questões de Miguel Tamen. A entrevista, muito longa, está disponível aqui, no site do entrevistado. Para tornar apetecível a sua leitura, reproduzo de seguida quatro breves passagens da mesma. Poderia ter escolhido dezenas de outras igualmente memoráveis, acreditem.

A propósito das suas aulas de lógica na Universidade de Lisboa:
Os alunos insurgiram-se essencialmente contra a ruptura de hábitos de pensamento e de exposição que as minhas aulas representavam. Os seus hábitos mentais tinham sido consolidados num estilo de pensamento por associação livre e tiveram a maior dificuldade em aceitar um estilo de pensamento por cadeias de inferências, que forçam uma conclusão. Como o foco da atenção muda constantemente na associação livre, a prática da associação livre é um estado flutuante de desconcentração e não é, por isso, condutiva a uma capacidade de concentração rigorosa. A generalidade dos alunos tinha por isso uma capacidade de concentração ínfima. Esta incapacidade de concentração era agravada ainda por uma reduzida capacidade de memorização (indispensável para fazer deduções), a qual era justificada por uma concepção tida por «progressista», segundo a qual memorizar é a negação da inteligência.
Sobre a sua dualidade de interesses (literários e filosóficos):
Um submarino é construído de acordo com o princípio do isolamento estanque dos espaços estratégicos, de modo a que a inundação de um não leve à inundação do espaço estratégico contíguo. Mas para mim foi confortante descobrir que não me foi possível organizar a minha mente como um submarino, e que a concepção dos dois compartimentos estanques da mente, como a do Reverendo Dogson [Lewis Carroll], em que podia esconder de um o que o outro podia saber, é uma fantasia narcisística de omnipotência, na qual uma pessoa se pode deleitar quando passeia, depois das aulas, entre as brumas de Christ Church Meadow, mas que a experiência posterior vem mostrar ser uma ilusão tão deformada como a do self-made man.
Sobre os tutoriais, em Oxford, com a filósofa Gertrude Anscombe:
Uma sessão tinha 50 a 60 minutos, muitas vezes seguida de chá; mas mesmo durante o chá o formato do diálogo usado no tutorial continuava, porque de modo algum se tratava de um momento de menor concentração ou diminuída perspicácia conceptual. As mesmas dificuldades repetiam-se, como quando, por exemplo, pegava numa chávena de chá e me perguntava:

"Would you trust Mr. Ballard's memory?"

Uma resposta adequada envolve reconhecer o passo relevante das Investigações Filosóficas, mas (e esta é a essência da atitude oxoniana) não se deve dizer que se reconheceu a alusão ao passo das Investigações (I, 342), uma vez que o tutor já sabe qual é; é suficiente saber inseri-la na organização da resposta.
A propósito de não ter gosto pela discussão pública:
A ideia básica é que neste momento da história da humanidade já se atingiu um estado de hipertrofia de interacção social. Não se deve por isso colaborar numa expansão desta hipertrofia, a qual se destina a legitimar os objectivos triviais da civilização de massas. Deve-se por isso renunciar a posições de leadership na já descontrolada hipertrofia da civilização de massas, excercendo a mencionada abstinência de participação em cliques ou lobbies, quaisquer que eles sejam.

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

o problema da indução

O raciocínio indutivo é fonte de perplexidades tremendas. Uma delas, que remonta a David Hume, ficou conhecida por «o problema da indução».

Por vezes sugere-se que este problema decorre da falibilidade da indução. Detectamos uma regularidade empírica (cada F observado é G) e projectamo-la para novos casos, fazendo uma previsão (o próximo F será G) ou uma generalização (todos os F são G). Mas nada nos garante absolutamente que a previsão ocorra ou que não existam algures contra-exemplos à generalização. E onde poderemos encontrar tal garantia? Este seria (mas não é!) o problema da indução.

O «verdadeiro» problema da indução, aquele que Hume nos colocou, não resulta de um desconforto com o facto de o raciocínio indutivo não poder levar-nos além de conclusões «meramente» prováveis. (Isto parece-me tão problemático como o facto de os quadrados terem quatro lados: a indução é inerentemente falível; caso contrário, seria dedução válida.) O problema humeano é antes o de enfrentar esta conclusão devastadora: nunca temos a menor razão para acreditar em previsões ou generalizações indutivas. Ou seja, a indução não é apenas falível: é inteiramente infundada.

Como se chega a esta conclusão? Para começar, observando que qualquer raciocínio indutivo envolve o pressuposto de que a natureza é bastante estável, regular ou uniforme. Sem este pressuposto, não fará nenhum sentido projectar regularidades para novos casos. Ora, como justificar esta convicção na uniformidade da natureza? Podemos tentar fazê-lo apenas de duas formas: a priori ou recorrendo à experiência.

A primeira alternativa, sugere Hume, é inviável: não podemos saber a priori que a natureza é uniforme, dado que a suposição contrária é perfeitamente inteligível. Lamentavelmente, a segunda alternativa não parece mais promissora. Pois como podemos saber pela experiência que a natureza é uniforme? Neste ponto, pode ocorrer-nos apenas o seguinte: sabemo-lo porque temos observado a sua uniformidade. Mas dizer que a natureza é uniforme porque temos observado muitos exemplos de uniformidade natural é fazer uma projecção indutiva. E assim precipitámo-nos numa circularidade para a qual não se vê saída: tentámos justificar o raciocínio indutivo através de uma inferência indutiva.

O que segue daqui? Que o pressuposto da uniformidade da natureza é injustificável. Que, portanto, toda a indução assenta num pressuposto injustificável. Que, por isso, também as conclusões dos argumentos indutivos são inteiramente injustificáveis. E assim o facto de o pão ter alimentado até hoje não oferece a menor razão para acreditar que continuará a alimentar amanhã. E o facto de os objectos terem obedecido até hoje a tais e tais leis da física não torna minimamente provável que continuem a comportar-se assim. Etc. O problema da indução é o desafio de fugir a este raciocínio formidável, que parece abalar o senso comum com um cepticismo impiedoso.

glossário: dedução

Um raciocínio dedutivamente válido tem esta característica: se (e importa nunca esquecer este «se») todas as suas premissas forem verdadeiras, a conclusão será verdadeira. É impossível (e não apenas improvável) um argumento dedutivamente válido ter apenas premissas verdadeiras e, ainda assim, uma conclusão falsa. O exemplo estafadíssimo é o seguinte:
Todos os homens são mortais.
Sócrates é homem.
Logo, Sócrates é mortal.
Um exemplo como este tem a desvantagem de alimentar a ilusão de que a validade dedutiva é algo bastante fácil de determinar. Nem sempre é. Na verdade, as pessoas enganam-se sistematicamente a raciocinar de forma dedutiva. Segundo alguns estudos empíricos, mesmo depois de estudar lógica continuam a cometer erros bastante grosseiros com a mesma frequência, ou quase. (A selecção natural moldou os nossos cérebros para caçar, e não para determinar o que se segue necessariamente de quê.)

Note-se que nem todos os argumentos dedutivamente inválidos merecem o balde do lixo. Alguns deles poderão ser, por exemplo, boas generalizações ou previsões indutivas.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

o mundo à beira do fim

Certo dia, o construtor Trurl concebeu uma máquina que podia criar tudo o que começasse por n. Quando ficou pronta experimentou-a, ordenando-lhe que fizesse novelos, depois nanquim e nanzuque, o que ela fez, e de seguida juntou tudo a narguilés cheios de nepente e de muitos outros narcóticos. A máquina executou as suas instruções à risca. Como não tinha ainda a certeza absoluta de que ela funcionava bem, Trurl fê-la produzir, uma coisa após outra, nimbos, nós, núcleos, neutrões, nafta, narizes, náiades e natrium. Ela não conseguiu cumprir esta última ordem, e Trurl, consideravelmente irritado, exigiu uma explicação.
Stanislaw Lem
«Como o Mundo Foi Salvo»

Este pequeno conto do livro The Cyberiad (1967) continua aqui, numa tradução que fiz há cerca de um ano. E deu um trabalho dos diabos, como não será difícil adivinhar.

sábado, 20 de setembro de 2008

o fim do mundo


O argumento delineado no post «o fim dos mundos» assemelha-se ao doomsday argument. Este argumento do «dia do juízo final» foi concebido inicialmente pelo cosmólogo Brandon Carter e desenvolvido pelo filósofo John Leslie, que há dez anos o discutiu com grande pormenor no livro The End of the World.

A conclusão do argumento de Carter e Leslie é apenas esta: é muitíssimo provável que a humanidade esteja à beira da extinção. Para captarmos o mínimo essencial do raciocínio doomsday, basta recordar esta experiência mental e apreciar dois cenários possíveis.

Suponha-se -- é este o primeiro cenário -- que a espécie humana continuará a existir durante milhares de séculos com a sua dimensão actual ou, talvez, com uma dimensão muito maior, caso se propague pela galáxia. Sob este cenário, ocupamos uma posição extraordinária na história da humanidade: contamo-nos, digamos, entre os primeiros 0.01% dos seres humanos.

Passemos ao segundo cenário: vamos extinguir-nos muito em breve. Este cenário sombrio, pelo contrário, deixa-nos numa posição bastante aborrecida. Pois 10% dos seres humanos que existiram até agora estão vivos actualmente. Sendo assim, se a humanidade se extinguir muito em breve, contamo-nos entre os últimos 10% dos membros da população humana, o que pouco tem de surpreendente. Um cenário deste género afigura-se, então, muito mais provável do que um cenário optimista.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

o fazedor de estrelas

Muitos destes primeiros universos não eram espaciais, mas não deixavam por isso de ser físicos. E entre estes universos sem espaço não eram poucos os que tinham uma natureza «musical»: o espaço era estranhamente representado por uma dimensão correspondente à altura musical, que abarcava miríades de diferenças tonais. As criaturas apresentavam-se como complexos padrões e ritmos de caracteres tonais. Podiam mover os seus corpos tonais na dimensão da altura e, por vezes, em dimensões humanamente inconcebíveis. O corpo de uma criatura era um padrão tonal mais ou menos constante, com o grau de flexibilidade e a ligeira mutabilidade de um corpo humano. Também podiam atravessar outros corpos vivos na dimensão da altura, à semelhança das ondas que se entrecruzam num lago. Todavia, ainda que estes seres pudessem passar tranquilamente pelos outros, também podiam lutar e danificar os seus tecidos tonais. Na verdade, alguns viviam devorando os outros, pois os seres mais complexos precisavam de integrar nos seus próprios padrões vitais os padrões mais simples que se espalhavam pelo cosmos, resultando directamente do poder criativo do Fazedor de Estrelas. As criaturas inteligentes podiam manipular, em função dos seus próprios fins, elementos que arrancavam do ambiente tonal fixo, construindo assim artefactos com um padrão tonal. Alguns eram usados como instrumentos para o desenvolvimento mais eficiente de actividades «agrícolas», o que permitia aumentar a abundância de comida natural. Os universos deste género, sem espaço, ainda que fossem incomparavelmente mais simples e magros do que o nosso próprio cosmos, eram suficientemente ricos para produzir sociedades que, além de «agricultura», tinham «artesanato» e até uma espécie de arte pura que combinava as propriedades da canção, da dança e da poesia. A filosofia, geralmente bastante pitagórica, surgiu pela primeira vez num cosmos deste género «musical».
Olaf Stapledon
Star Maker (1937)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

o fim dos mundos

Não pude, de forma alguma, fazer aqui justiça ao poder explicativo do realismo modal. Isso seria coisa bastante descabida num blog. Fiquei-me, pois, por um único exemplo. Mas, felizmente, não há virtude explicativa capaz de salvar esta teoria que, além de inspirar a maior repugnância ao senso comum, parece ter corolários práticos e epistémicos pouco recomendáveis. E isto porque há uma razão tremendamente forte para crer na sua falsidade. (O que é um alívio, dado que nenhuma razão me faria acreditar na sua verdade.)

O mundo actual exibe um grau impressionante de ordem e regularidade. Os objectos físicos obedecem escrupulosamente a leis que conhecemos bastante bem, etc. Não vale a pena aprofundar o óbvio. O mundo actual, enfim, é como uma sala bastante bem arrumada, para usar uma imagem intuitivamente apelativa.

Exploremos a analogia. A sala, sem dúvida, poderia estar melhor arrumada. Ou seja, entre todas as disposições possíveis dos objectos que esta contém, algumas corresponderiam a um grau ainda maior de ordem ou regularidade. Mas muitas outras -- a vastíssima maioria das disposições possíveis, na verdade -- corresponderiam antes a um grau enorme de desorganização.

Recordando agora a experiência mental apresentada neste post, consideremos as seguintes hipóteses:
  1. Só a sala actual é real.
  2. Todas as salas possíveis são reais.
Dada a situação em que estamos, que hipótese merecerá o nosso assentimento? Evidentemente, a primeira. Se só a sala actual for real, nada será menos surpreendente do que o facto de estarmos nela. (É como tirar a bola vermelha se não houver nenhuma outra bola na tômbola.) Pelo contrário, se todas as salas possíveis forem reais, ficaremos numa posição extraordinária: havendo um enorme predomínio de salas caóticas, habitar uma das salas arrumadinhas envolve uma sorte incrível. (É como tirar a bola vermelha se existirem milhões e milhões de bolas brancas.)

Passemos, por fim, das salas aos mundos inteiros. Primeiro facto: o mundo actual é notavelmente regular. Segundo facto: entre todos os mundos possíveis capazes de admitir habitantes como nós, aqueles que são muito irregulares predominam de forma esmagadora em relação aos que têm um grau de regularidade semelhante ou superior ao nosso. Nestas circunstâncias, a hipótese do realismo modal coloca-nos numa posição ridiculamente improvável: a de habitarmos um dos raros mundos com um grau de regularidade muito apreciável. Pelo contrário, a hipótese de que só o mundo actual é real torna a nossa posição absolutamente aborrecida: sim, habitamos este mundo muito arrumado e tal, mas o que tem isso de surpreendente? Rigorosamente nada, pois não há outro mundo para habitar.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

o aborrecimento como verdade

Antes de a teoria de Lewis sucumbir a uma machadada fatal num dos próximos posts, uma experiência mental muito simples poderá facilitar a apreensão do golpe.

Imaginemos David, para dar um nome ao sujeito da experiência. Há uma tômbola de dimensão desconhecida que contém uma única bola vermelha e um determinado número de bolas brancas. A bola vermelha, e nenhuma outra, dá acesso ao Prémio.

David carrega num certo botão e uma bola sai da tômbola. Teve sorte: é a boa vermelha! Mas então aparece o Demónio e diz-lhe que só receberá o Prémio se responder correctamente à seguinte pergunta: quantas bolas havia na tômbola? Para lhe facilitar a vida, o Demónio diz-lhe que há apenas três hipóteses:

  1. Dez bolas;
  2. Um milhão de bolas;
  3. Um bilião de bolas.

David sorri. Afinal o Demónio não é particularmente maldoso, dado que 1 é, com toda a evidência, a resposta razoável. Pois tirar a bola vermelha se esta fizer parte de um conjunto de apenas dez bolas não envolve nenhuma sorte notável. Pelo contrário, a verdade de 2 deixaria David numa posição muito mais extraordinária: entre um milhão de bolas, ele teria conseguido a única vermelha! E a resposta 3, se verdadeira, faria de David um jogador absurdamente afortunado.

Em suma, a resposta 1 impõe-se, pois é aquela que torna menos surpreendente o facto de David ter tirado a bola vermelha. É essa a resposta que coloca David numa posição mais aborrecida, a partir da qual a sua conquista do Prémio pouco tem de impressionante. E as probabilidades compelem-nos a admitir o aborrecimento como verdade.

sábado, 13 de setembro de 2008

mundos enganadores

O realismo modal pode ser pouco convidativo não só pelas suas implicações práticas, mas também por conduzir a um cepticismo profundo. Se existirem todos os mundos que Lewis admite, sabemos muito menos do que julgamos saber.

No essencial, o problema é o seguinte: os mundos possíveis radicalmente enganadores parecem predominar em relação aos mundos «bem comportados» e, sendo assim, há uma grande probabilidade de habitarmos um dos primeiros. Talvez o problema se torne suficientemente claro se pensarmos no caso da indução. Suponha-se, e.g., que largo uma esfera de metal. Indutivamente, prevejo que caia no chão, provoque um certo ruído, rebole um pouco até se deter. Mas é possível que ocorram outras coisas. A esfera pode subir no ar. Explodir. Transformar-se num elefante. Gerar um buraco negro. Todas estas coisas, segundo Lewis, ocorrerão realmente num ou noutro mundo. As possibilidades são indefinidamente vastas. Para cada mundo em que a previsão indutiva se verifica, parece haver uma infinidade de mundos em que, das formas mais extraordinárias, as coisas não correm como se esperava. Ora, como poderei saber que não habito um desses mundos? De um modo mais geral: como poderemos confiar alguma vez na indução, se há tantos mundos em que o raciocínio indutivo leva à falsidade?

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

glossário: indução

Ao raciocinar indutivamente, tomamos como ponto de partida uma regularidade registada em certos casos e projectamo-la para novos casos, fazendo uma generalização ou uma previsão. Por exemplo, observámos vários corvos negros (e nenhum corvo de outra cor). Indutivamente, podemos concluir que todos os corvos são negros (uma generalização) ou que o próximo corvo que observarmos também será negro (uma previsão).

A indução é inerentemente falível: a verdade das premissas nunca exclui a possibilidade lógica de a conclusão ser falsa. Contudo, supõe-se que o raciocínio indutivo, se realizado com cuidado, é suficientemente fiável para justificar a crença em generalizações ou previsões empíricas. Na verdade, confiamos na indução a todo o momento.

O termo «confirmação» usa-se para designar a relação entre as premissas e a conclusão de um raciocínio indutivo. Num argumento indutivamente forte, as premissas confirmam a conclusão num grau elevado: as primeiras, se verdadeiras, tornam muito provável que esta última também seja verdadeira.

quarta-feira, 10 de setembro de 2008

o grande afinador

Curiosamente, J. J. C. Smart (veja-se este post) mostra-se muito receptivo à ideia de uma pluralidade de universos no contexto da discussão sobre a existência de Deus.

Os físicos descobriram algo muito intrigante: o fine tuning de algumas das constantes fundamentais da natureza. Essas constantes têm valores aparentemente arbitrários e, se tivessem assumido valores um pouco diferentes, nunca teriam existido estrelas, planetas, vida, organismos capazes de pensar sobre estas coisas. Parece assim que o universo está minuciosamente afinado para permitir a existência de seres pensantes. Como explicar isto? Será que os valores das constantes se devem a um acaso bruto? Não há forma de repudiar esta possibilidade, sem dúvida, mas é sempre melhor evitar a crença em acasos extraordinários, se houver no horizonte uma explicação que os elimine. E parece haver uma explicação óbvia: um fine tuner, isto é, Deus ou algo lá perto. As constantes têm esses valores, e não outros, porque um agente concebeu o universo com o desígnio de o tornar habitável por seres conscientes.

Convenhamos que este é um herdeiro interessante do velho argumento do desígnio, o de William Paley, demolido por Hume e enterrado por Darwin. Interessante, sim, mas não arrasador. Muitos ateus, como Smart, sublinham que o acaso extraordinário e a agência divina não esgotam as alternativas. Imagine-se que há uma vastíssima pluralidade de universos e que os valores das constantes fundamentais variam aleatoriamente de universo para universo. Então em alguns deles (uma porção ínfima do todo, seguramente) as constantes assumem valores que permitem a existência de seres pensantes. Nada de espantoso. E ainda menos surpreendente: nós estamos num desses universos, pois como poderia ser de outro modo?

Onde poderemos, então, encontrar a melhor explicação do fine tuning? Na pluralidade de universos ou na agência divina? E, no primeiro caso, como deveremos entender esses universos? Como partes do mundo actual ou como mundos alternativos à maneira de Lewis? J. J. C. Smart e J. J. Haldane, um filósofo teísta, discutem o assunto neste livro brilhante.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

valor infinito

Dada uma hipótese muito menos incrível do que o realismo modal, a ética utilitarista (entre outras) vê-se perante uma dificuldade semelhante à indicada neste post. A hipótese é esta: o mundo actual (i.e., o nosso universo) contém quantidades infinitas de bem-estar e de «mal-estar». Isto será verdade se, por exemplo, o universo for habitado por um número infinito de seres sencientes, cujas experiências perfaçam um total infinito de prazer e um total infinito de dor. Nada de muito extraordinário, pelo que sabemos.

Esta hipótese deixa o utilitarista em maus lençóis. Afinal, se a nossa obrigação for promover ou maximizar o bem-estar, e se os prazeres e as dores forem infinitos, não importará o que fizermos. Por muito que nos esforcemos por fomentar o prazer e mitigar a dor, adoptando a perspectiva imparcial recomendada, o resultado será sempre o mesmo: prazer e dor sem fim. E assim a ética utilitarista levará à apatia moral.

De certo modo, não interessa que a hipótese seja verdadeira. O simples facto de o utilitarismo depender de que seja falsa parece afectar adversamente a sua credibilidade. Pois não é absurdo que as nossas obrigações, aqui e agora, dependam de um princípio ético que será defensável apenas se o universo não for infinito no valor e no desvalor que contém?

Não sei se esta dificuldade estranha será superável. Nick Bostrom discute-a aqui com muita profundidade, alcançando resultados pouco animadores.

sábado, 6 de setembro de 2008

pelo senso comum

J. J. C. Smart, o filósofo australiano que nasceu em 1920 e continua activo, defende uma «ética verdadeiramente universalista», mais precisamente o utilitarismo. E, na passagem reproduzida neste post, Smart sugere que o realismo modal seria o fim das nossas preocupações éticas, se advogarmos uma perspectiva como a utilitarista. Percebe-se porquê: se todos os mundos possíveis forem igualmente reais, a quantidade de bem-estar na «totalidade do ser», para usar uma expressão pretensiosa, permanecerá sempre inalterada, independentemente do que fizermos. Para fugir à indiferença ética, teríamos de dar atenção apenas ao bem-estar existente no nosso mundo, mas assim acabaríamos por subscrever uma ética «particularista», tão arbitrária e infundada como aquelas que nos dizem para nos preocuparmos apenas com a nossa nação, a nossa «raça» ou seja lá o que for.

Lewis responde de forma surpreendente: uma «ética verdadeira universalista» é, à semelhança do realismo modal, uma invenção de filósofos, uma perspectiva extremamente afastada do senso comum. Por isso, se o realismo modal nos força a não levar a sério uma ética desse género, faz-nos assim a ficar mais próximos do senso comum em matérias morais.

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

glossário: utilitarismo

O utilitarismo é fundamentalmente uma teoria da obrigação moral. Na sua versão mais comum e influente, que se tornou conhecida por «utilitarismo dos actos», diz-nos que agir de forma acertada é apenas promover o bem-estar com toda a imparcialidade. De acordo com esta perspectiva, um acto é eticamente permissível se, e apenas se, não existe um acto alternativo cuja realização resulte num maior bem-estar.

Os chamados «utilitaristas das regras» fazem uma proposta diferente. A permissividade ética de um acto, afirmam, depende do seu acordo com o código moral correcto ou ideal -- e este consiste no conjunto de regras que, se colhesse uma aceitação social generalizada, resultaria num maior bem-estar.

quinta-feira, 4 de setembro de 2008

o fim da ética

In fact on a realistic theory of possible worlds they are all going to exist anyway, and so a truly universalistic ethics collapses [...]. The only sort of ethics that a realistic theory of possible worlds would allow would be an ethics of the speaker's own world, and this would be a particularist ethics, much as an ethics that considered only the good of one's own tribe or nation.
J. J. C. Smart
Ethics, Persuasion and Truth