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sábado, 27 de setembro de 2008

ornitologia de poltrona

Ao problema humeano da indução seguiram-se outros desafios filosóficos colocados pelo raciocínio indutivo. Um deles é o «paradoxo dos corvos», assim chamado por causa do exemplo com o qual se costuma explicá-lo. Foi descoberto pelo filósofo da ciência Carl G. Hempel (1905-1997).

Consideremos as seguintes hipóteses:
H1: Todos os corvos são negros
H2: Tudo o que não é negro não é um corvo.
A observação de corvos que sejam negros confirma H1, ou seja, aumenta a probabilidade de esta hipótese ser verdadeira. E que o que confirmará H2? Evidentemente, a observação de coisas que não sejam negras e não sejam corvos: chapéus amarelos, flores azuis, bandeiras verdes, planetas vermelhos. A lista seria interminável.

Ora, acontece que H1 e H2 são logicamente equivalentes: implicam-se mutuamente, são verdadeiras e falsas precisamente nas mesmas circunstâncias. Mesmo sem treino em lógica, é fácil perceber a equivalência: dizer que todos os corvos são negros é afirmar que todos os corvos estão no conjunto das coisas negras, ou seja, que se algo não está no conjunto das coisas negras não é um corvo, ou seja, que tudo o que não é negro não é um corvo.

Para gerar o paradoxo basta acrescentar um princípio que se afigura auto-evidente: se duas afirmações são equivalentes, tudo aquilo que confirmar uma confirmará a outra. E assim chegamos à conclusão estranhíssima de que a observação de chapéus amarelos, flores azuis, etc., confirma a hipótese de todos os corvos serem negros. Nelson Goodman fez o seguinte comentário a propósito desta conclusão:
A perspectiva de sermos capazes de investigar teorias ornitológicas sem nos expormos ao mau tempo é tão atraente que sabemos que tem de haver nela uma armadilha.
Note-se que este não é um paradoxo no sentido mais estrito do termo, já que o raciocínio de Hempel não produz nenhuma contradição. Simplesmente leva a um resultado que, à luz do senso comum, é quase tão absurdo como uma contradição. Mas qual será ao certo a armadilha escondida no paradoxo dos corvos?

quinta-feira, 25 de setembro de 2008

o problema da indução

O raciocínio indutivo é fonte de perplexidades tremendas. Uma delas, que remonta a David Hume, ficou conhecida por «o problema da indução».

Por vezes sugere-se que este problema decorre da falibilidade da indução. Detectamos uma regularidade empírica (cada F observado é G) e projectamo-la para novos casos, fazendo uma previsão (o próximo F será G) ou uma generalização (todos os F são G). Mas nada nos garante absolutamente que a previsão ocorra ou que não existam algures contra-exemplos à generalização. E onde poderemos encontrar tal garantia? Este seria (mas não é!) o problema da indução.

O «verdadeiro» problema da indução, aquele que Hume nos colocou, não resulta de um desconforto com o facto de o raciocínio indutivo não poder levar-nos além de conclusões «meramente» prováveis. (Isto parece-me tão problemático como o facto de os quadrados terem quatro lados: a indução é inerentemente falível; caso contrário, seria dedução válida.) O problema humeano é antes o de enfrentar esta conclusão devastadora: nunca temos a menor razão para acreditar em previsões ou generalizações indutivas. Ou seja, a indução não é apenas falível: é inteiramente infundada.

Como se chega a esta conclusão? Para começar, observando que qualquer raciocínio indutivo envolve o pressuposto de que a natureza é bastante estável, regular ou uniforme. Sem este pressuposto, não fará nenhum sentido projectar regularidades para novos casos. Ora, como justificar esta convicção na uniformidade da natureza? Podemos tentar fazê-lo apenas de duas formas: a priori ou recorrendo à experiência.

A primeira alternativa, sugere Hume, é inviável: não podemos saber a priori que a natureza é uniforme, dado que a suposição contrária é perfeitamente inteligível. Lamentavelmente, a segunda alternativa não parece mais promissora. Pois como podemos saber pela experiência que a natureza é uniforme? Neste ponto, pode ocorrer-nos apenas o seguinte: sabemo-lo porque temos observado a sua uniformidade. Mas dizer que a natureza é uniforme porque temos observado muitos exemplos de uniformidade natural é fazer uma projecção indutiva. E assim precipitámo-nos numa circularidade para a qual não se vê saída: tentámos justificar o raciocínio indutivo através de uma inferência indutiva.

O que segue daqui? Que o pressuposto da uniformidade da natureza é injustificável. Que, portanto, toda a indução assenta num pressuposto injustificável. Que, por isso, também as conclusões dos argumentos indutivos são inteiramente injustificáveis. E assim o facto de o pão ter alimentado até hoje não oferece a menor razão para acreditar que continuará a alimentar amanhã. E o facto de os objectos terem obedecido até hoje a tais e tais leis da física não torna minimamente provável que continuem a comportar-se assim. Etc. O problema da indução é o desafio de fugir a este raciocínio formidável, que parece abalar o senso comum com um cepticismo impiedoso.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

o aborrecimento como verdade

Antes de a teoria de Lewis sucumbir a uma machadada fatal num dos próximos posts, uma experiência mental muito simples poderá facilitar a apreensão do golpe.

Imaginemos David, para dar um nome ao sujeito da experiência. Há uma tômbola de dimensão desconhecida que contém uma única bola vermelha e um determinado número de bolas brancas. A bola vermelha, e nenhuma outra, dá acesso ao Prémio.

David carrega num certo botão e uma bola sai da tômbola. Teve sorte: é a boa vermelha! Mas então aparece o Demónio e diz-lhe que só receberá o Prémio se responder correctamente à seguinte pergunta: quantas bolas havia na tômbola? Para lhe facilitar a vida, o Demónio diz-lhe que há apenas três hipóteses:

  1. Dez bolas;
  2. Um milhão de bolas;
  3. Um bilião de bolas.

David sorri. Afinal o Demónio não é particularmente maldoso, dado que 1 é, com toda a evidência, a resposta razoável. Pois tirar a bola vermelha se esta fizer parte de um conjunto de apenas dez bolas não envolve nenhuma sorte notável. Pelo contrário, a verdade de 2 deixaria David numa posição muito mais extraordinária: entre um milhão de bolas, ele teria conseguido a única vermelha! E a resposta 3, se verdadeira, faria de David um jogador absurdamente afortunado.

Em suma, a resposta 1 impõe-se, pois é aquela que torna menos surpreendente o facto de David ter tirado a bola vermelha. É essa a resposta que coloca David numa posição mais aborrecida, a partir da qual a sua conquista do Prémio pouco tem de impressionante. E as probabilidades compelem-nos a admitir o aborrecimento como verdade.

sábado, 13 de setembro de 2008

mundos enganadores

O realismo modal pode ser pouco convidativo não só pelas suas implicações práticas, mas também por conduzir a um cepticismo profundo. Se existirem todos os mundos que Lewis admite, sabemos muito menos do que julgamos saber.

No essencial, o problema é o seguinte: os mundos possíveis radicalmente enganadores parecem predominar em relação aos mundos «bem comportados» e, sendo assim, há uma grande probabilidade de habitarmos um dos primeiros. Talvez o problema se torne suficientemente claro se pensarmos no caso da indução. Suponha-se, e.g., que largo uma esfera de metal. Indutivamente, prevejo que caia no chão, provoque um certo ruído, rebole um pouco até se deter. Mas é possível que ocorram outras coisas. A esfera pode subir no ar. Explodir. Transformar-se num elefante. Gerar um buraco negro. Todas estas coisas, segundo Lewis, ocorrerão realmente num ou noutro mundo. As possibilidades são indefinidamente vastas. Para cada mundo em que a previsão indutiva se verifica, parece haver uma infinidade de mundos em que, das formas mais extraordinárias, as coisas não correm como se esperava. Ora, como poderei saber que não habito um desses mundos? De um modo mais geral: como poderemos confiar alguma vez na indução, se há tantos mundos em que o raciocínio indutivo leva à falsidade?